sábado, 12 de setembro de 2009

Alteridade

Colocar-se no lugar do outro talvez seja o grande desafio de uma vida humana. Não digo colocar-se em sentido simplesmente metafórico; refiro-me à vivência prática, na qual não é possível tergiversar apenas, pois deve-se agir. Vivendo na racionalidade, de onde a fuga é improvável, resta o desafio da convivência em sociedade e do choque ininterrupto de expectativas: como prover as próprias necessidades, vivenciando a liberdade que nos é possível sem tolher as necessidades e as liberdades alheias e, mais do que isso, também ampará-las no meio disso tudo?

Considero que a alteridade só é pura, humanamente possível, antes da racionalidade, na concepção metafísica do homem, como apontou Levinas. O agir ético antes da experiência, o sentir ético para além de si mesmo, para uma transcendência do ser que simplesmente é. Explico.

Quando racionalmente nos dispomos a nos colocar no lugar do outro, tentamos nos desprender de nossa visão das coisas, buscando abarcar as circunstâncias que permeiam a vida do outro. Mas em regra isso é impossível: para olhar com os olhos do outro seria preciso compartilhar de todos os momentos de sua vida, e até mesmo de seus caracteres genéticos, além da sorte de seus pensamentos e valores. Ao tentar enxergar pelo outro, criamos uma imagem distorcida e fragmentada de sua realidade, que nos é inviável decifrar. Porém, ainda assim tentamos clareá-la com nossas próprias conclusões, aplicando concepções que "a priori" serviriam para nos explicar, mas que não necessariamente explicam o outro. O que produto disso tudo, não raro, é um borrão que se chama opinião, mas que nomeamos certeza, na qual tentamos acreditar para resolver o outro e suas vicissitudes, para compreendê-lo e contabilizá-lo, embora trate-se de uma minimização do seu próprio ser que é uma estátua de barro feita por nós e para nós, mera representação, embora não raro acreditemos piamente que em tal se encontre a explicação da vida.

Se compreender o que move o outro é inviável, o que dizer de se esperar que ele também nos compreenda, e mais, que referende nosso modo de ser e dele compartilhe, enfim, que nos siga? Sempre haverá expectativas frustradas em qualquer campo das relações humanas, o acordo irrestritamente acolhido é tão raro quanto tulipas no deserto. Ceder, enganar-se, deixar passar, iludir-se: eis o produto do choque de vivência entre os humanos.

Li certa feita um escritor afirmar que um dos problemas é que somos uma sociedade cheia de vencedores. Há muitos campeões em tudo, todos querem chegar na frente e só aceitam o lugar mais alto do pódio: se lá não chegam, há inúmeras desculpas e grande frustração. O problema é que nem todos podem ser vencedores, e se pensarmos bem, o que seria um vencedor? Trata-se de uma escala fictícia, na qual nos encaixamos automaticamente, mas que nada mais é do que uma ilusão. Tal forma de pensamento só reforça o ego, o valor do individualismo, e torna o mundo um campo de competições de todas as estirpes, característica que vem crescendo ao longo da história em praticamente todo o globo.

Olhar o outro com intensidade, sem coisificá-lo, respeitando a alteridade sem julgamentos que o tornem um objeto, é possível diante do primeiro olhar, do olhar que não ignora, pois não consegue, enxergar o outro é parte de sua condição humana. Depois desse olhar vem a abstração, a racionalidade, o cerceamento da alteridade, a apreensão de alguns aspectos em detrimento de outros, a tentativa de moldar o outro às nossas concepções e desejos. Sentir, olhar o outro antes de pensá-lo: eis a condição da alteridade. Sem dúvida, uma condição fácil de ser explicada, mas difícil de ser aplicada.

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