terça-feira, 5 de maio de 2009

A "mulher chorona' e os políticos brasileiros

Aconteceu no verão de 2006. Na época, eu trabalhava na Justiça Eleitoral, mais especificamente no Cartório Eleitoral de Taquari. Aqui no RS, esse órgão e muitos outros adotam um expediente "relax" no verão: a carga horária é diminuída, e sexta-feira as atividades começam e se encerram mais cedo, com o intuito de que pessoal possa viajar mais cedo para a praia. (Sério, é verdade!) Acontece que eu não morava em Taquari: ia e voltava todo o dia de São Leopoldo, distante cerca de 100km, porque ainda estava cursando a faculdade de direito em Porto Alegre. Como na quinta o expediente se encerrava às 18h e, na sexta, começava já às 8h, eu sempre dormia naquela agradável cidade de colonização açoriana, terra do ex-presidente Costa e Silva (um dos 5 da ditadura, lembram? Governou entre 1967 a 1969, iniciou a fase mais dura e despótica dessa fase negra da história brasileira com o AI5 - o que não me deixaria orgulhoso, mas em sua terra natal há até museu em homenagem a ele), da laranja (apesar de só haver uma rua com pés de laranjas) e do mel (que só achei na casa de um velho português radicado por lá). Foi numa dessas ocasiões que conheci o "seu" Antônio.



Eram 4 horas da madrugada de uma sexta-feira. Eu voltada de uma festa na cidade de Lajeado, nas proximidades, junto com um amigo, ex-colega do INSS local, onde eu já tinha trabalhado. Havia uma neblina densa na estrada, que impedia qualquer tentativa racional de andar a mais de 60km/h. Conversávamos para evitar o sono, comentando nossas impressões da noite quando, chegando no trevo de entrada da cidade, visualizamos um objeto à primeira vista não identificado. Esfregando os olhos, não tivemos dúvidas: havia um carro tombado à beira da estrada, literalmente virado de cabeça para baixo. Estava caído num barranco. Paramos no acostamento, já bem acordados. Com cuidado, nos aproximamos, caminhando em meio ao barro do local. Gelamos de apreensão.

Era um Uno Mille. Como já havia sido proprietário de 2 desses veículos tempos antes, sabia que não se davam muito bem com curvas mais acentuadas. Imaginei o trajeto do motorista por um instante, mas um grito me chamou a atenção:

- O pessoal! O pessoal aí atrás, meu Deus do céu! - bradava a relutante voz vinda do banco do motorista.

Suspirei de alívio. Não havia ninguém morto. (Não é nada agradável ver uma pessoa recém morta. Já passei por isso, e não guardo boas recordações). Tratamos de tentar acalmar o acidentado - homem baixinho, aparentando uns 50 anos de idade -, mas ele não se aquietava. Falei para ele ficar calmo, que estávamos ligando para a Polícia Rodoviária e o socorro já ia chegar. Mas não adiantou: ele gritava cada vez mais pelo "pessoal de trás", e começou a tentar sair do veículo virado. Não concordamos, mas não dava para evitar: com bastante dificuldade, ele conseguiu pular para o banco de trás e sair pelo porta-malas, que não estava chaveado e pode ser aberto por nós. Sabia que não se deve mexer em pessoas acidentadas, que o risco de lesão é muito grande. Porém, não adiantou argumentar: o homem era teimoso e parecia estar noutra dimensão.

Em meio a tudo isso, procurávamos por outras pessoas perdidas pela volta. No carro, não havia ninguém. Os vidros estavam fechados e não havia indícios quaisquer de que alguém pudesse ter se perdido na queda. Mas o acidentado afirmava insistentemente que os outros estavam ali atrás. Ele conseguiu sair do veículo. Erguemos seu corpo e colocamos ele sentado. Estava ensopado de sangue, e precisava de apoio para não desmoronar no chão. Do pouco que sabia e sei sobre primeiros socorros, entendi que precisava mantê-lo lúcido. Enquanto aguardávamos longos 40 minutos até os policiais chegarem - liguei de pronto para eles quando saí do meu carro; disseram que logo chegariam junto com uma ambulância ao local -, o nosso então paciente disse que se chamava Antônio e que era da pequena cidade de Tabaí - município vizinho de Taquari e que é conhecido pelo trecho da BR 386 que encerra: a rodovia Tabaí-Canoas. Fora isso, só arrancamos dele que ele havia "tomado todas" (nem era preciso dizer: seu odor de cachaça "da braba" não deixava dúvidas disso).

Os policiais chegaram, questionaram se eu e meu colega tínhamos causado o acidente e, com uma calma (leia-se preguiça) descomunal, começaram a olhar o veículo e seu entorno, aparentando grande conhecimento sobre o procedimento, e a realizar algumas ligações. Mal olharam para o pobre Antônio. Questionei-lhes sobre o socorro e, ao saber que eles antes removeriam o carro do local - o que daria um bom trabalho - para, só então, levar o capotado ao hospital, fiquei furioso, dizendo que iria levá-lo. O policial não gostou do meu tom, mas antes dele me refutar, para não perder tempo e não estender a angústia sobre a saúde do cidadão, identifiquei-me como chefe do cartório eleitoral da cidade - eu realmente o era -, esclarecendo que trabalhava com a juíza local. Foi o que bastou para ele mudar o semblante do rosto e me elogiar, dizendo que se tratava de uma atitude nobre da minha parte. Patifes. Partimos, então.

Foram longos 12km na estrada Aleixo Rocha, que liga a RS 287 à cidade de Taquari. A neblina era muito intensa, e como a estrada não tinha sinalização alguma, tive que guiar a menos de 40km/h. O esforço maior, porém, foi manter o "seu" Antônio acordado. Ele foi no banco da frente, enquanto meu amigo estava atrás, segurando-o. Conseguimos conversar um pouco. Ele informou que trabalhava numa madeireira da cidade de Tabaí e que tinha ido numa festa na zona do meretrício. Estava na gandaia, o safado! Insistiu que tinha gente atrás dele e balbuciou algo sobre suas filhas. Foi difícil mantê-lo acordado. Sacodíamos ele, falávamos alto, mas o sono do "" parecia ser mais forte. Foi então que aconteceu.

Sinceramente: considerando o contexto sério de toda situação, por essa eu não esperava - e olha que eu costumo brincar de futurologia e não me surpreender com qualquer coisa. "Seu" Antônio foi se inclinando para a frente, pouco a pouco. Antes que pudéssemos tentar alertá-lo, ergueu-se de supetão, cantalorando a plenos pulmões: "Eta mulher chorona!... chora feito...". E seguiu tentando seguir no ritmo, em meio a nossas inevitáveis gargalhadas.

Para quem não conhece, está aí a canção, um clássico do gênero:

http://www.youtube.com/watch?v=kNsoiyszBis

Chegamos no hospital depois de outras quatro tentativas do "seu" Antônio de continuar no ritmo da festança. Só lá fomos saber que ele era o Presidente da Câmara Municipal de Tabaí. Uma autoridade, o homem! Deixei meu número de celular e, já com o sol a pino, fui para o hotel dormir. O relógio marcava 6h30min da manhã. O descanso deveria ser breve.

Meu sono, porém, não durou muito. O pessoal do hospital conseguiu informar os parentes do talentoso intérprete da "mulher chorona" sobre o ocorrido e um deles me ligou. Eram 7h15min, e mal pude acreditar quando ele, que realmente não lembro quem é, de pronto me pediu sigilo absoluto a respeito do episódio, enfatizando a importância da figura do vereador Antônio para a comunidade. Despertei do meu meio-sono imaginando qual impropério dizer pro sujeito. Limitei-me a retrucar:

- De jeito nenhum! A sorte dele é que não vivo aqui, e tenho poucos conhecidos. Se dependesse de mim, não ia haver uma pessoa sequer na região que não soubesse desse acidente!

Não me ligaram mais. Confesso que sei ser até intimidativo, nas raras vezes em que alguém consegue me irritar. Contei o que aconteceu para absolutamente todas as pessoas que eu conhecia na cidade, inclusive a respeito do "pedido" de segredo. Ri sozinho ao comprar o jornal da região e ver uma foto do respeitável Presidente da Câmara tabaiense numa inauguração de obras na cidade vizinha. Brasil, Brasil, Brasil.

Apesar da parte cômica dessa história, interessa-me refletir rapidamente sobre a atitude do Antônio e a solução dada para "abafar" o acontecido. É que apesar dele ser apenas um vereador de um município minúsculo (tem menos de 5.000 habitantes) do interior do Rio Grande do Sul, seu modo de agir e de resolver a questão assemelha-se ao que grande (enorme!) parte dos políticos brasileiros faz. Lembram do Renan Calheiros e a pensão que empreiteiros pagavam ao seu filho de um relacionamento extraconjugal? E o castelo do deputado federal Edmar Moreira, excluído do seu imposto de renda? E as passagens aéreas, que quase todos os parlamentares do Congresso Nacional gastavam para fins exclusivamente particulares, uso do qual foram acusando-se aos poucos, só quando não dava mais para negar? Fico nesses exemplos. Você conhece outros tantos, tenho certeza.

O que acontece é que o político brasileiro, em geral, não está nem aí para sua imagem. Que o diga o deputado federal gaúcho Sérgio Moraes, que ontem mesmo disse estar se lixando para a opinião pública, pois se reelegia de qualquer jeito (deixando subentendido: apesar de suas falcatruas conhecidas por todo o Brasil, expostas em reportagem da Revista Veja no ano passado, ele volta). O homem público tupiniquim até dá uma disfarçada, mas a verdade acaba aparecendo. O problema é o que nós fazemos com ela depois...

Discordo que nossos políticos sejam a imagem do povo brasileiro. Muitos dizem isso. Eu não acho que o povo brasileiro seja como Hidelbrando Pascoal, Jáder Barbalho, Fernando Collor, Paulo Maluf e tantos outros. Porque esses, embora moralmente estejam abaixo da linha do começo de qualquer escala, são pró-ativos, se mexem, procurando seu espaço, fazem o possível para garantir uma boquinha. Agem, embora para o mal. O povo brasileiro é pior, porque embora esteja, via de regra, do lado do bem (comum), reelege e consagra tipos assim. Pior porque raramente se insurge e, ao ver alguma manifestação de professores, policiais ou qualquer outra categoria, reclama que vai chegar mais tarde em casa e perder o começo da novela, sem nem cogitar refletir acerca do que está se passando ali. O povo brasileiro quer comodidade, vende seu voto barato e, dias depois da eleição - aquele domingo chato, dizem, em que se deve perder tempo indo votar -, já esqueceu do comprador. Acredita em palavras vazias, em promessas impossíveis e se deixa levar pelas músicas de campanha e outros recursos publicitários que agradam aos olhos. Ou dá de ombros, dizendo que todos são iguais.

Não, não estou exagerando. É assim mesmo: reelegemos gente pior do que nós. Claro que há pessoas honradas lá, e claro que há pessoas piores aqui, na sociedade. Mas, em regra, é assim: não nos importamos em pesquisar histórico pessoal, profissional e de perquirir a capacidade de quem elegemos. Contentamo-nos com um minuto de dúvida e com a escolha mais fácil e rápida, ou nos deixamos levar por terceiros, que nos convencem com alguma simpatia e meia dúzia de sorrisos. Contratamos aqueles que nos governam, que decidem o percentual de imposto que pagamos, as leis que devemos seguir e as punições que nos são dadas por infringi-las; pensamos levianamente que não faz diferença, sem cogitar que, dependendo do posicionamento tomado por partidos e políticos, seja em nível municipal, estadual ou federal, pagaremos mais ou menos pelo pão na padaria, teremos mais ou menos imposto de renda retido na fonte, enfrentaremos mais ou menos pedágios, conseguiremos empréstimos e ganhos de investimento com mais ou menos juros, poderemos andar na rua com mais ou menos tranquilidade, teremos, ou não, esgoto tratado e energia elétrica. Enfim, deixamos de lado a importância de escolher, na figura do candidato e na sigla do partido, os rumos que queremos para o dia de amanhã e para o futuro daqueles que nos são caros.

Sim, somos nós, eu e você, que permitimos que pessoas irresponsáveis e que não honram, dia a dia, na vida pública e na privada, o cargo que ocupam, estejam lá. Eu e você deixamos o "seu" Antônio, motorista irresponsável e político de moral duvidosa, decidir o rumo que nossas vidas tomarão. Os cargos eletivos no Brasil são comparáveis com o estabelecimento de onde o "seu" Antônio se encontrava antes de tombar seu Uno Mille: o interesse financeiro rege as relações, o mundo externo é deixado de lado e afastado tanto quanto possível e, dentro deles, a festa é completa, e a trilha sonora segue nessa sonoridade: "Eta mulher chorona... chora feito uma safona...". Pobres e malditos de nós.


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