domingo, 3 de maio de 2009

O Sertão e a Certeza

Dia desses, no trabalho, um colega me contou que sua empregada doméstica havia chegado pela manhã em sua casa faceira, noticiando que tinha ganhado dois cachorrinhos de uma vizinha, um macho e uma fêmea. Com sua falta de calma habitual, meu colega lhe pergunto de pronto - imagino que ironicamente - os nomes que ela daria aos bichinhos. Orgulhosa, a moça disse que o macho chamar-se-ia Sertão. Surpreso, meu colega balbuciou supor que o nome da cadela, então, seria Baleia (incorrendo no corriqueiro e infeliz equívoco daqueles que apenas "ouvem falar" de livros e suas histórias: ligar a famosa (e amorosa) cachorra personagem de "Vidas Secas", Baleia, de autoria de Graciliano Ramos, aos romances "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, e "Os Sertões", de Euclides da Cunha - este, para mim, o melhor de todos). Inconformada, a moça se insurgiu: "Não, que isso, doutor! É uma cachorra, não um peixe! Se o macho é Sertão, é claro que a fêmea é a Certeza!"


Não cortei o barato dele, que passou a bradar sobre a falta de conhecimento e de noção do povo brasileiro. Fiquei tentado a incluir na conversa a falta de conhecimento literário e o pseudoconhecimento utilizado para a glória própria, mas deixei pra lá. Algumas pequenas batalhas não valem a saliva, isso aprendi muito cedo na vida. O que me importou, no caso, foi reparar não no trocadilho, mas na dita certeza, a forma feminina do muito certo, ou "certão", de acordo com a dona dos cães. Enfim, cabe a pergunta: existe alguma certeza, além da cadelinha que encontrou um novo lar ao lado de seu companheiro S(C)ertão?



Desde cedo, as certezas me causavam espanto. Meu pai é daquelas pessoas "oito ou oitenta", para quem algo é certo ou errado, pessoas são boas ou más, essas coisas. Fui criado assim, fadado a crer em Deus, no trabalho, na propriedade e na família. Felizmente, cedo superei esses valores como mitos, e entendi que se tratam muito mais de convenções sociais do que de verdades absolutas. Comecei a duvidar daquelas certezas que eram muito bonitas na teoria, mas que não me apareciam no dia a dia; muito antes pelo contrário, eu não conseguia enxergar Deus nas desigualdades e na má sorte de muitos, nem entendia como empregos que exigiam o sangue daqueles que os ocupavam poderiam trazer dignidade, achava estranho haver tantas propriedades, tanta divisão da terra, tanta gente sem um pedacinho de grama sequer e, fora minha ligação amorosa com meus pais, não via um sentido sagrado na convivência com tios e primos distantes que nada tinham a ver comigo. Não que eu tenha abandonado os valores perenes do meu pai por completo: apenas passei a enxergá-los com um olhar de dúvida e descrença, entendendo que, como quase tudo no mundo, há sempre um lado melhor que outro. Enfim, as certezas que se me apresentavam eram frágeis demais - como todas efetivamente o são.



E foi sempre assim: as certezas que qualquer pessoa me apresentava como inquestionáveis eram mentalmente destruídas por mim em segundos. Desde as certezas teológicas até a própria morte, que pode ser pensada considerada uma passagem rumo a um outro mundo, uma iluminação ou a destruição total: para mim, nenhuma dessas ideias é absolutamente certa, exclui a outra ou é impensável. A morte - assim como a vida -, simplesmente, é desconhecida até que venha - e é isso, particularmente, que a torna tão interessante.



O século XIX foi palco da destruição de certezas antigas e construção de novas. Freud, Marx e Nietzsche, os "mestres da suspeita", termo de autoria do filósofo Paul Ricouer, mostraram novas formas de se pensar o mundo e suas manifestações. Querendo ou não, o século XX deve muito daquilo que teve de bom e de mau a esse trio, desde avanços no campo dos direitos humanos e do auto-conhecimento ao nazismo e a regimes totalitários. Trata-se de alguns dos (se não os)principais quebradores de certezas da história. No século XX, as mudanças e superações de certezas foram tantas e tamanhas que, pensando bem, não é desrazoável que o homem duvide que está ou possar vir a estar duvidando do que acontece ao seu redor e deixe tudo por isso mesmo.



Com o mar de possibilidades da Física Quântica, veio o tempero desse tempo tão dificilmente conceituável. O Século XXI vem com certezas abaladas oriundas do Século XX, mas insiste em trazer junto consigo algumas que vêm desde o tempo em que o tempo não era contado. Agora, entende-se melhor o Princípio da Incerteza, que falando em grosso modo, torna imperativo o esquecimento das antigas certezas humanas. A questão da interrelação dos eventos físicos, por exemplo, desafias nossas concepções incrustadas em nossas mentes como um rochedo à beira mar desafia a força das ondas: ainda serão necessárias muitas marés para que algum espaço a mais seja conquistado. O maior risco, ao meu ver, é que o homem assuste com as tantas possibilidades que se lhe apresentam e tente se agarrar à segurança de ideias passadas requentadas e disfarçadas com novas roupagens.



Resumindo: o tempo cartesiano já passou. A certeza, para Descartes, era o critério da verdade. Ambos, a verdade, a certeza e Descartes, ficaram no passado.



Por fim, vai uma frase do Filme "O Buda", produção argentina de 2005, que recomendo, e que tem uma palhinha no link mais abaixo (vai o link, não estou conseguindo colocar o vídeo de outro jeito, mas um dia eu chego lá):



"O orgulho do erudito é como o de um condenado que está numa prisão orgulhoso da sua cela, porque é grande."




http://www.youtube.com/watch?v=kheNjk99Z3Y

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