quinta-feira, 4 de junho de 2009

Os presos do Brasil


Aqui no Rio Grande do Sul, atualmente os meios de comunicação têm dado grande ênfase à crise do sistema carcerário (ao lado, foto do pavilhão C, 3ª galeria do Presídio Central de Porto Alegre). Há, em suma, um beco sem saída. De um lado, o Estado, financeiramente "quebrado", há muito não tem tido a construção e manutenção de presídios e necessário aumento do efetivo dos servidores do corpo carcerário como uma de suas prioridades, o que ocasionou uma aglomeração sub-humana nos presídios, verdadeiro depósito de pessoas que, em regra, não lograram viver em sociedade sem infringir a lei penal, bem como uma situação tenebrosa de trabalho para agentes penitenciários, assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais que atuam no âmbito da execução de penas privativas de liberdade. De outro, há juízes e desembargadores preocupados com as condições desumanas vivenciadas pelos detentos, uma vez que a prática da execução das sanções infringe diversos princípios constitucionais, em especial o maior deles, o da dignidade da pessoa humana, que tentam resolver a questão dentro da razoabilidade que entendem possível, seja soltando réus condenados até que haja vagas, seja deferindo prisões sem a expedição de mandados à força policial, seja decidindo não prender aqueles que não tenham cometido crimes de exacerbada violência, seja interditando presídios e pressionando o Executivo, seja permitindo que réus que cumprem pena nos regimes semiaberto e aberto permaneçam no ficto regime da prisão domiciliar até que haja vagas em alguma prisão compatível. Por fim, há também o lado mais frágil da questão, o dos próprios presos. Como o debate tem se aprofundado entre os dois primeiros lados e suas mui potentes vozes, falarei desse lado considerado mais culpado, que não tem tido vez nos debates levantados até então.

Antes, para me fazer compreender, esclareço:

- sou absolutamente contra a pena de morte;
- entendo que quem comete ato definido como infração penal (seja crime ou contravenção) merece ser punido, para seu próprio bem e para o bem da sociedade;
- sei que a falta de perspectivas, recursos e amparo facilita o ingresso de pessoas na carreira criminosa, mas estou convicto de que, em suma, a pobreza não explica o crime em si e que há muito mais do livre-arbítrio de cada um numa ação delituosa do que qualquer outro fator (com a exceção dos inimputáveis, obviamente);
- estou certo de que o problema não tem solução a curto nem a médio prazo, demandando uma mudança de mentalidade geral, seja do Executivo, que tem que construir mais presídios, seja do Judiciário no que tange à necessidade da punição efetiva, antes da recuperação, respeitada a dignidade de cada detento, seja do Legislativo, que muitas vezes se omite quando deveria cobrar soluções do Executivo para o problema, seja da população em geral, que dá de ombros para aqueles taxados de criminosos e se arrepia quando ouve falar que um presídio pode ser construído nas redondezas.

Dito isso, eis a questão que me irresigna: as autoridades falam, a imprensa fala, mas os presos não: ninguém os ouve ou se interessa em ouvi-los.

Em princípio, admito, parece uma incoerência. Afinal, o que teria a dizer um transgressor das regras sociais, mesmo sobre suas condições na prisão? Pode um homicida, um estuprador, um estelionatário, um traficante, um surrupiador do patrimônio alheio, pode algum deles ter voz em qualquer discussão relevante? Eu mesmo respondo: cada um deles pode e deve.

Em primeiro lugar, entendo que o paradigma de que existe uma divisão clara entre criminosos e cidadãos de bem deve ser desfeita. Não que essa diferença não exista; porém, trata-se de uma linha tênue, se for bem observada. Tendo em vista que criminoso é aquele que comete um delito (ou crime, conduta punida com reclusão ou detenção, ou ainda o anômalo crime de posse de entorpecentes, que não prevê pena privativa de liberdade alguma em nossa atual legislação), se não levarmos em conta apenas aqueles condenados pelo Estado, seria difícil achar quem nunca tivesse cometido um crime. Pense bem: você conhece alguém que nunca tenha ou dirigido embriagado - com alto teor alcóolico ou causando risco com sua manobras -, ou difamado/caluniado/injuriado terceiros, ou usado substâncias ilícitas, ou lesionado outrem, ou comprado produtos de origem ilícita sabendo da sua natureza, ou feito cópias ilícitas de músicas, livros ou vídeos, ou achado coisa alheia e não devolvido, ou se apropriado de outra forma ilícita de algo que não era seu, ou portado arma de fogo ilegalmente, ou pescado ilegalmente, ou ... os exemplos são inúmeros. Talvez monges isolados da vida social ou religiosos reclusos tenham suas "fichas" limpas. Mas eu não ponho a mão no fogo por ninguém.

Ora, é sabido que o Estado não consegue investigar e punir todas as condutas criminosas. Veja-se o exemplo de nossos dirigentes políticos, muitos e muitos com alguma "bronca" na justiça, que efetivamente não são punidos, embora não raro sejam investigados e processados. É simplesmente impossível a punição de todos os crimes, mas nem por isso eles deixam de ser sistematicamente praticados, muito embora não nos demos conta dessa realidade. Alguns são punidos, tão somente alguns. Presumo, pelo número de presos no Brasil (cerca de 400.000, não todos com sentença condenatória, gize-se), que até 1% da população já tenha recebido sanção penal, considerando também nessa estimativa que já cumpriram pena. Lado outro, presumo que semelhante percentual nunca tenha cometido um crime sequer.

Não ignoro o princípio da não-culpabilidade (presunção de inocência) e muitos outros aspectos, dentre os quais a inexatidão científica do que estou dizendo, excludentes penais, etc. Porém, entendo que, no fundo, há essa questão sobre a qual deveríamos pensar mais: será que somos tão diferentes daqueles que estão presos, será que aqueles que povoam o cárcere não são também humanos como nós, só que talvez tenham cometidos mais crimes, a ponto de por alguns deles terem sido condenados?

Eis, enfim, a questão: por que os presos (eles mesmos, não seus advogados) não são ouvidos a respeito de sua própria situação de vida? Nem se precisaria ir aos presídios: há muitos deles cumprindo pena nos regimes aberto e semiaberto que trabalham e poderiam dar testemunho à imprensa de sua condição. Por que a parte que é a mais afetada da questão fica de fora de qualquer discussão ou debate? Sinceramente, gostaria que nas reportagens que são feitas sobre as condições das prisões não se ouçam apenas juízes, promotores e policiais, mas também presidiários, a respeito das condições de vida que lá encontram. Gostaria de ver mesas de debate formadas com esses profissionais, mas também com ex-detentos, por exemplo, que dessem testemunho do que já vivenciaram atrás dos muros da prisão. Entendo que não se trata de anjinhos, mas não vejo nenhum empecilho para que a voz deles também seja ouvida.

Preso não tem peso político: não vota quando condenado com decisão transitada em julgado (não passível de recurso), visto ter seus direitos políticos suspensos. Mas nem por isso deixa de ser cidadão, no sentido subjetivo do termo. Além disso, há muitos deles no cárcere sem condenação, presos provisórios, que amanhã ou depois podem retornar ao convívio social. Ignorá-los todos é ignorar uma parte de nós mesmos, é achar que podemos tomar racionalmente a complexidade da questão como observadores e críticos que somos, desprezando a experiência (nefasta) daqueles que se espremem entre outros corpos, em locais onde jamais deixaríamos sequer nossos bichos de estimação.

Resumindo, gostaria de ver a imprensa entrevistando os Joãos e Josés dos Anzóis que, embora em regra culpados, aguardam, no silêncio daqueles que bradam mas não são ouvidos, a volta à liberdade sem dignidade e com a esperança (se é que há) de um futuro melhor se esvaziando a cada instante.

Um comentário:

  1. Comentei o post anterior. E quando der, passa lá:

    www.filosofiadoegg.blogspot.com

    Abração

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